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Beirões, Alentejanos e Transmontanos

Nas décadas de 1950 e 1960, explode em Portugal o êxodo do interior rural para as cidades. Atraídos pela promessa de trabalho na indústria e serviços, e de uma melhoria nas suas condições de vida, milhares de habitantes do interior rural português mudam-se para as grandes cidades do litoral, em fuga da miséria. 

A maior parte integrar-se-á na área do comércio e serviços na cidade de Lisboa, para onde se deslocam diariamente. Muitos outros empregam-se na construção civil e na indústria, áreas que sofrem uma grande expansão neste período.

Com o êxodo rural, surge um novo problema: onde e como alojar rapidamente o influxo de migrantes?

A solução encontrada foi a ocupação progressiva mas rápida dos arredores das cidades. Para além de nestes se encontrar mais espaço disponível para construção, os valores imobiliários eram consideravelmente mais baixos do que no centro das cidades.

Constrói-se nomeadamente nos terrenos baldios ou agrícolas ainda existentes nessas zonas. A paisagem rural desaparece progressivamente ao longo deste período, bem como os seus estilos de vida. As próprias vilas e aldeias sofrem grandes transformações – ou destruições, talvez seja esse o termo mais correto.

Com efeito, todo este processo geralmente é levado a cabo sem qualquer planeamento ou preocupação de salvaguarda patrimonial.grande parte das construções anteriores ao século XX, mesmo que no centro das vilas, são demolidas e substituídas por edifícios em altura; e surgem vários bairros de construções ilegais nas suas imediações -  construídos com esforço pelos próprios moradores, utilizando materiais sobrantes dos grandes projetos de construção - restos de madeira, tijolos e placas de metal (daí a designação que se tornou comum, a de "bairros de lata").

Tal como grande parte da periferia de Lisboa, Queluz e Belas sofrem nas décadas de 1950 e 1960 um acelerado processo de aumento populacional e de urbanização. Queluz, sobretudo, por possuir uma estação de caminho de ferro, assiste a uma transformação muito mais rápida que Belas, que se manterá mais "resguardada" do avanço do betão, pelo menos até à década de 1980.

Os migrantes que chegam neste período a Queluz e Belas provêm sobretudo da Beira Interior, do Alentejo e de Trás os Montes - mas não em exlcusivo.

Em 1961, em resposta ao seu crescimento populacional, Queluz é elevada ao estatuto de Vila.
Contudo, este reconhecimento não se refletia na qualidade de vida dos queluzenses: na vila, estavam em falta inúmeros serviços básicos, como uma esquadra de polícia, um liceu, ou até uma igreja paroquial. O único posto médico, com meios muito limitados, pertencia aos Bombeiros Voluntários de Queluz. Muitos habitantes da vila não possuíam ainda eletricidade, água corrente ou saneamento. A estas deficiências, junta-se a ausência de planeamento urbanístico e a má qualidade da construção das habitações.

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Cesaltina Carrasco
79 anos


Nasceu em Vila Nova de São Bento, Alentejo
Vive em Queluz há 55 anos

“Vim para Queluz aos 21 anos. Vim cá passear, arranjei cá um namorado e casei com ele. (…)”

No Alentejo, Cesaltina trabalhava na agricultura. “Acabámos a ceifa ... nós trabalhávamos no campo para o meu pai. O meu pai era agricultor, tinha terra dele. Era uma propriedade muito grande, um monte. Nós somos cinco [irmãos] e calhou um bom bocado [da propriedade] a cada um. Ora, naquela época… “Lá vai a filha do lavrador!”, diziam.”

Em casa, para além dos cinco filhos e dos pais, moravam o avô e a avó e os pastores que trabalhavam na propriedade.

Tinha vindo com a irmã mais velha visitar os tios, que moravam em Queluz. Foi num café que ainda existe em Queluz – o “Fonte dos Namorados” – que conheceu o marido, por acaso vizinho dos seus tios. No café, frente aos refrescos, comentou para a irmã “ Ah, está ali um rapaz com uns olhos tão lindos! Eu vou cativá-lo!” Os tios reparam no vizinho António, sozinho no café, e convidaram-no para se lhes juntar. O resto é história – estiveram casados 55 anos.

“Queluz era só isto aqui. A Pousada [do Palácio de Queluz] era onde os contínuos do palácio viviam. Às vezes eu dizia ao meu marido: «António, quando eu vim para aqui isto era tudo terras – agora é tudo casas.» Era tudo campo, hortas!”

Casou e foi morar para o Bairro do Chinelo, para a mesma casa onde se encontra até hoje. Primeiro alugaram a casa, que mais tarde compraram e aumentaram com um andar.

O marido de Cesaltina chamava-se António Francisco e era também alentejano, de Odeceixe. Era marceneiro e dourador. Uma vez casada, Cesaltina começou a trabalhar com o marido na oficina.

“A nossa vida era uma vida muito ocupada, não tínhamos sábados nem domingos. Éramos só nós os dois, e tínhamos bastante trabalho. Nunca tivemos ajudantes. (…) Havia um cinema [em Queluz] no terreno onde está a Farmácia Zeller (…). Eram 3$500 o bilhete, uma insignificância! Mas íamos poucas vezes – a gente pensava que o dinheiro se acabava…”.

Também se lembra das festas dos Santos Populares, tal como se festejavam no bairro. “O Sr Joaquim, dono da mercearia, o meu marido e outro senhor – eram três – iam de madrugada à Ribeira [Mercado da Ribeira, Lisboa] buscar as sardinhas. O Sr Joaquim tinha uma furgoneta, e lá iam. (…) A gente fazia as três [festas]: Santo António, São João e São Pedro. Era para todos! Com o dinheiro do nosso bolso, não havia ajudas! O Sr Joaquim dava o pão de Mafra – ali com a sardinhita – e quem quisesse comia. (…) Decorávamos as ruas com balões. E saltávamos à fogueira! As mulheres iam de manhã buscar “carrascos” para queimarmos [nas fogueiras]. Atravessávamos a estrada e íamos além à Matinha. Vínhamos de volta todas em bicha, com os carrascos (risos). Uma moça tinha um marido, que também “atuava” (sic) nas sardinhas. Ele tinha um gira-discos daqueles grandes, antigos, e punha-lhe duas colunas. Eu dava a luz, e ela às cinco e meia ou seis horas [da tarde] punha o gira-discos à janela. Ela dizia que era para convidar as pessoas! Junto à minha porta é que se fazia o assado."

"O alecrim, a alfazema… O Sr Joaquim vendia para aí manjericos...Ele tinha ali um muro, punha-os em cima e nós íamos ali comprar os manjericos."

Quando veio para o bairro, conta, as pessoas “até tinham galinhas que andavam na rua, e coelhos! Isto era como uma aldeia – mais pequeno que uma aldeia! (….) Nós já tínhamos água quando para aqui viemos, e eletricidade também. As mulheres aqui do bairro trabalhavam como mulheres-a-dias, a lavar roupa… Porque nessa altura não havia máquinas [de lavar roupa], era tudo à mão. E o rio estava limpo, iam lavar a roupa ao rio. Depois secavam-na, punham-na toda dobradinha e iam entregar às clientes. Os homens aqui trabalhavam quase todos na construção civil.”

“Era um bairro mesmo pobre. (…) Havia muito desleixo. Por exemplo, às portas: comiam uma banana ou descascavam uma laranja, e jogavam a casca para a rua.”.

Acompanhou a explosão rápida da construção em Queluz. “Começaram a construir, e quando nos apercebemos, nós os do bairro estávamos aqui «trancados». (…) Quando eu vim para cá, só havia dois prédios - os prédios da ICOSAL, uma empresa, que ainda existem. Ficavam para lá da linha da estação, para cima. O mais era terras e quintas.”

“Eu agora já gosto mais de viver aqui. Toda a gente me dá os bons dias. (…) Dantes, quando batia aqui o sol no Inverno, a gente juntava-se. Vinha tudo aqui para o sol. O meu marido até dizia: “Isto parece o pátio dos piolhos!”.  

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Joaquim e Maria da Purificação Pires
79 e 78 anos


Nasceram na zona do Sabugal, Beira Alta
Vivem em Queluz há 58 anos

Joaquim e Purificação são ambos naturais da aldeia de Pousafoles do Bispo, no concelho de Sabugal, distrito da Guarda.

Conheciam-se de vista desde pequenos, mas até aos 14 apenas se encontravam no mercado ou na missa dos domingos. “Hoje talvez já não seja assim, mas antigamente, nas aldeias, a religião era muito praticada.”, afirma Joaquim.

Aos 14 anos, Joaquim deixou a sua terra e veio para Queluz. Sozinho, apanhou o comboio e trazia “uma mala de viagem que até parecia a da Linda de Suza, a mala de cartão! Ainda me lembro quanto custou o bilhete do comboio: 96 escudos!”

Joaquim confessa que saiu da sua terra por a aldeia onde vivia ser muito pobre. “Na aldeia havia fartura de trabalho no campo, mas não rendia nada! (…) Lá na aldeia era um trabalho [agrícola] artesanal.”

Purificação afirma mesmo: “Trabalhava-se para nós, para sobreviver! (…) Cada um trabalhava no seu bocadinho [de terra], cada um matava o seu porquinho… e assim se ia sobrevivendo.”

Em casa de Joaquim, moravam seis pessoas: os pais, os avós, Joaquim e o irmão. “Resultado: seis pessoas a comer onde não há rendimento – tinha que se trabalhar todo o ano, para se arranjar batatas, algum milho, algum centeio… Ou um vitelo! Para depois se vender [no mercado local] e poder comprar umas botas ou um fato.”

Ao chegar a Queluz, Joaquim tinha à sua espera um familiar, que trabalhava como contínuo no Palácio de Queluz. Foi ele quem lhe arranjou trabalho como marçano, ou seja, como ajudante de mercearia. Joaquim conta que, tendo encontrado esse familiar em férias na aldeia, lhe terá pedido que o ajudasse a conseguir trabalho em Lisboa. “E ele lá se tirou de cuidados, e foi à procura. O homem [dono da mercearia] disse «Que venha já amanhã! De maneira que foi assim.”

“Era uma mercearia na Rua Manuel de Arriaga. Fechou há um ano e tal, porque morreu o dono. Era mesmo em frente aos Arcos Reais, onde está o chafariz.” Joaquim esteve dois anos a trabalhar sem receber ordenado – apenas teto e alimentação. Purificação recorda: “O que o ajudava ainda eram umas gorjetas que lhe iam dando! 2 tostões, 3 tostões...”. E entregava as encomendas dos clientes em casa, cabazes de quilos às costas.

Joaquim tem a sua própria explicação: “Havia muita fartura de mão de obra! Naquele tempo os marçanos eram tantos como as criadas de servir. Era uma chusma de gente dessa! Vinham das aldeias! Eu tinha umas primas minhas [como criadas de servir] numa casa de gente muito falada em Queluz. (…) À pala da minha prima Maria, vieram uma série de irmãs para cá, e foram todas servir. Ora, lá na aldeia o rendimento era praticamente nada. E elas eram umas sete ou oito raparigas! Cada um tinha de se fazer à vida, tiveram que vir. “

Para além do trabalho na mercearia, Joaquim chegou a vender secos e molhados no antigo Mercado de Queluz, tendo depois passado a trabalhar no atual mercado, inaugurado em 1959.

Joaquim assim viveu até ir à inspeção para a tropa – da qual ficou livre. Achou que era a altura de organizar a vida. Estávamos em 1962, e Joaquim tinha já um irmão emigrado em França. Relembra: “Eu disse, agora tenho que optar! Ou vou para França, onde já tenho um irmão, ou estabelecer-me por minha conta. Porque eu, nessa altura, ganhava 250 escudos por mês! E muitas vezes não tinha rendimento para comprar a roupa que vestia ou o calçado que calçava.”

Em 1964, um outro seu parente comprou a única mercearia e taberna no Bairro do Chinelo e desafiou-o para gerir o estabelecimento. Aceitou, e por lá ficou até à reforma. “Antigamente as mercearias tinham de vender de tudo: lixívia avulso, petróleo avulso, outras coisas… Esta mercearia aqui [no Bairro do Chinelo] era uma mercearia de bairro, era uma lástima….Lá para cima [no centro de Queluz] já era tudo mais avançado. Aqui só havia gente velhota, gente com poucas posses. Aqui vendia-se azeite ao decilitro! E o café vendia-se às 50 gramas! Faltava dinheiro…”

Pela mesma altura, regressou à terra e casou com Maria da Purificação, na Igreja da Senhora da Graça no Sabugal. Contam que nem para o casamento fecharam o estabelecimento – um empregado manteve as portas abertas sábado e domingo, e na segunda-feira seguinte estavam já ao balcão.
Moravam por cima do negócio, um sótão de teto tão inclinado que, segundo Purificação, “Quando eu me ia a deitar, dava com cada cabeçada!”


Para além de trabalhar na loja, Purificação tratava da lida da casa. Quando nasceram as filhas do casal, foi uma rapariga do Bairro do Chinelo, de nome Graça, que chamaram para ajudar a tratar das crianças. “Ainda nós a ajudámos a criar a ela! Era a filha do “Botas”, da casa aqui abaixo, e ele tinha muitos filhos em casa. (…) Eu fala com o pai e a mãe dela e disse-lhe « Se quiseres vir aqui para nossa casa, vais ajudando, vais tomando conta da minha filha mais nova, e ficas aqui, e a gente come todos. E assim foi: até a rapariga casar. E nós fomos padrinhos dela!” Quando entrou ao serviço dos Pires, Graça teria entre 14 e 16 anos.

Joaquim e Purificação lembram-se com nitidez das grandes cheias que assolaram a periferia de Lisboa, incluindo Queluz, em 25 de Novembro de 1967. “Começou [a chuva] na sexta feira. Choveu sexta toda a noite, sempre chuva, e sábado choveu todo o dia. No domingo de manhã, tive a preocupação de ir ver a família que me tinha acolhido quando eu vim da terra. Mas o muro do palácio, junto ao rio, estava todo rebentado! Eu entrei dentro do palácio – e a figura que ainda hoje tenho mais presente na memória, é a de [o cadáver de] um menino na borda do rio…”

“Mais ao fundo, no palácio, estava um senhor pendurado numa árvore” – lembra Purificação.
Pedia socorro, e os civis presentes tentaram ajudá-lo lançando-lhe uma corda, mas houve um desabamento de terra que complicou a operação. Ainda assim, o homem sobreviveu.

“Isto [atual Av. Eng. Duarte Pacheco] era um rio por aqui abaixo, minha senhora! (…) O prédio que veio abaixo [junto aos Arcos Reais de Queluz], ora eu conhecia gente que lá morava, porque eu trabalhei na praça [mercado] de Queluz. O prédio rachou a meio! Depois lá andaram a fazer a limpeza do rio, com as máquinas, e lá apareceu uma rapariga que eu conhecia, do tal prédio…” - lembra Joaquim.

E mais: “Para o lado de cima da estação [de caminhos de ferro de Queluz-Belas], foi um pandemónio! Aquilo era só barracas e barracas… Só quem tinha direito a ter casa nesse tempo eram os carteiros, os polícias ou gente da CP. Só eles é que tinham dinheiro para ter uma casa. E além de terem a casa, ainda alugavam quartos para sobreviverem!” Purificação completa: “Só quem tinha um ordenadinho certo! Quem podia alugava um quarto.”

“Olhe, ali naquela encosta onde está o hospital [de Amadora – Sintra] era só barracas!”, lembra Joaquim.

A partir de meados da década 1970, dizem, tudo mudou. A construção em altura explodiu ao longo da Linha de Sintra, incluindo Queluz. O que não se refletiu em qualidade de vida ou habitacional: “ A construção absorveu tudo e mais alguma coisa. Queluz é pior que a Amadora, Cacém é pior que Queluz, depois Rio de Mouro e por aí fora…. Para lá do Cacém, aquilo é um completo dormitório!”

Joaquim e Purificação gostariam que as ruas de Queluz estivessem mais limpas e cuidadas. E dão como exemplo o Chafariz da Carranca, junto ao Palácio Nacional, que está constantemente entupido, com fugas de água.

A mercearia e taberna dos Pires fechou no início dos anos 90 e é hoje um restaurante. Mas o casal continua a viver por cima do restaurante. E afirmam gostar muito de aqui viver. “Não trocamos o nosso cantinho por nada!” 

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