Outras Vozes


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Maria Delfina Teodoro
77 anos

Vive em Queluz desde que nasceu



A avó materna de Delfina era natural de Caminha, no Minho. “A minha avó veio para
Lisboa novita. Ela andava por aí a vender peixe. Já em Caminha ela era daquelas mulheres que iam ao mar, e ajudavam os maridos a trazer os barcos [para terra], com uma junta de bois.”

A certa altura a avó de Delfina mudou-se com a família para Queluz, para o Bairro
do Casal Canito. “O bairro ficava onde é a ICOSAL.
(…)Foi lá que eu fui criada. Era um bairro muito velhinho.” A avó de Delfina continuou a trabalhar como varina. “Ela ia para Lisboa, para a
Ribeira. Apanhava o comboio das quatro e meia da manhã, e depois voltava a pé, com mais senhoras. (…) A minha avó depois vendia o peixe por aqui e por ali, no Cacém, em Queluz… (…) Ia vender à porta com a canastra.”

O pai de Delfina era de Vouzela, no distrito de Viseu. Já a mãe nascera em Lisboa, no Alto do Pina. “O meu pai estava na polícia”. E revela: no seu tempo de criança, a prisão de Queluz ficava no edifício da atual sede dos Escuteiros de Queluz.

Delfina foi a sétima de doze filhos. Os três irmãos mais velhos faleceram ainda crianças. “Dos 12 filhos que a minha mãe teve, fui eu a única que nasci na
maternidade. Foi na altura da tuberculose, e a minha mãe começou com uma tosse muito forte e a deitar expetoração com sangue. Então foi ao médico, ao Silva e Costa, que era cá de Queluz e que era da tropa. E ele disse que ela tinha de ir para a maternidade, que podia haver qualquer problema… (…) Foi para a Maternidade Alfredo da Costa, e por isso é que eu nasci lá [em Lisboa]. Mas eu tenho mais
daqui, só sou alfacinha nos documentos!”

“Havia uma bicazita, a Bica dos Namorados, e a minha mãe ia lá buscar água. Não havia água nem luz [em casa], nesse tempo…” Para lavar a roupa, recorriam ao
“Rio da Ponte Pedrinha” (Ribeira do Jamor) ou a uma cascata no Casal dos Afonsos, onde hoje passa o IC19. “Havia lá um portão para o palácio. (…) Os meus
irmãos iam para ali tomar banho, a água era muito limpinha. Via-se as enguias, e chegávamos a ir lá apanhá-las! A minha mãe fritava-as em casa.”

“Isto era tudo caminhos de cabras… Era campo! (…) Nos Quatro Caminhos não havia grandes prédios, só havia umas vivendas dos dois lados do parque. (…) Lá
em cima, no Monte Abraão, era só terrenos. O Bairro Económico era só terrenos. Nestas zonas verdes [Parque Felício Loureiro] havia uma eira e a gente ia para lá brincar. (…) Os meus irmãos mais velhos diziam: “Ó mana, a gente vai aos pássaros! Anda! E eu ia com eles para todo o lado.”

Um tio de Delfina trabalhava como marceneiro no Palácio de Queluz, onde à época os trabalhadores dispunham de pequenas hortas para cultivo próprio. “E eu ia para lá, para ao pé da minha tia, ajudá-la. Ela chamava-me e eu fugia da escola, para
ajudá-la a regar as hortas. (…) Ali havia vacas e ovelhas, em currais. Eu levantava-me por volta das sete horas da manhã para ir apanhar o esterco para levar para a horta.”

“Tinha eu 12 ou 13 anos, e ia buscar água à fonte [junto ao Palácio] com uma bilha de alumínio. Eram 25 litros de água à cabeça!” Foi também nessa idade que
começou a trabalhar com a mãe, como empregada de limpeza. “Apanhei uma infeção nas mãos, porque limpávamos com lixívia pura. Foi o Doutor Leitão que me livrou!”

Aos 17 anos, foi trabalhar numa fábrica de gabardines na Amadora. Quando a fábrica fechou, 14 anos depois, Delfina voltou a trabalhar em limpezas, e assim
continuou até se reformar.

Com 19 anos, conheceu o marido nos bailaricos que o Clube Desportivo de Queluz [atual Real Sport Clube] organizava na sua sede, na Rua Heliodoro Salgado. “A
mocidade daqui, quase tudo lá ia e arranjou namoricos.” Aos 21 anos, casou e foi morar para a Rua Padre Inácio, em Queluz. “Vivia num quarto, porque não
podia pagar mais"

Só em 1971 conseguiu alugar uma casa, já no Bairro Almeida Araújo. “Já tínhamos luz e água. Eram três assoalhadas.” Delfina diz não gostar da designação “Bairro Almeida Araújo”, que considera pomposa. Prefere chamar ao seu bairro “Bairro do
Chinelo”, e avança uma explicação para o nome: “Havia uma senhora [no bairro]que fazia chinelos, e as pessoas chegavam aqui e perguntavam onde vivia a
senhora que fazia os chinelos. Isto era o que os meus pais me contavam!”

Um dos irmãos de Delfina aprendeu o ofício de padeiro na padaria do Bairro do Chinelo, onde hoje se encontra a sede do GAVE. “A gente tratava aqui [em casa]dos assados, e depois levava-os ali à padaria para pôr no forno, quando ainda estava quente. Muita gente fazia isso. Era uma maravilha!” A padaria fechou alguns anos depois de Delfina chegar ao bairro.

E nos (poucos) tempos livres? “Íamos ao cinema Piolho [antigo Cine-Teatro de Queluz]. Vínhamos de lá cheios de pulgas! (risos) Mas eu gostava mais de
bailaricos. Ali na Ponte Pedrinha, havia a Verbena dos Bombeiros. Era mais de Verão, na altura das fogueiras… (…) Vinham cá tocar os Cinco Latinos, os Seis de Portugal, os Gatos Negros… Aquilo eram conjuntos que eram uma maravilha! (…)Também havia os bailes da Legião Portuguesa, onde é agora a Pousada [D. Maria I].(…) A entrada era 15 tostões, e o meu tio é que recolhia as entradas.”


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José Ricardo Loureiro
63 anos

Nasceu na Amadora e vive há 30 anos em Queluz


Os pais de Ricardo não têm de todo origens em Queluz: o pai era um funcionário público lisboeta, a mãe doméstica e madrilena. Como muitos outros, nas décadas de 1950 e 1960, os pais de Ricardo mudaram-se para a Linha de Sintra em busca de habitação a preços acessíveis. Na Amadora, “começaram a procurar casa e alugaram. Na altura alugava-se, ninguém comprava casa… Por ali ficaram, e ainda lá moram na mesma casa. (…) Isto foi em 1957 ou 1958.”

A Amadora era então, no seu dizer, “uma aldeia, toda a gente se conhecia. Havia searas… (…) O prédio dos meus pais tinha dois andares, era essa a cota máxima habitual.”

“Fui nascer a Lisboa, porque sou de uma geração em que as pessoas começaram a nascer nos hospitais. Mas fui “feito” aqui ao lado, na Amadora, que então pertencia ao Concelho de Oeiras. Foi aí que fiz a minha vida. Entretanto, há 30 anos, mudei-me para Queluz.”

Mas já antes disso Ricardo era visitante assíduo da zona. “Em 1967 ou 1968, por aí… O meu avô vinha passar férias connosco, e levava-nos a passear a Queluz. Íamos ao ringue de patinagem, que ficava onde hoje está o parque infantil [do Jardim Central de Queluz]. (…) Naquela época havia uma autêntica febre com o hóquei em patins, até mais que com o futebol. Toda a gente tinha patins!(…) Vínhamos da Amadora para andar de patins no ringue de Queluz. São as minhas primeiras memórias de Queluz.”

Já na adolescência, depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, Ricardo recorda-se de vir a Queluz para…namorar. “Não sei o que se passava na Amadora sociologicamente, mas havia poucas raparigas para se namorar. Então, eu e outros cachopos vínhamos da Amadora para namorar no Liceu de Queluz. Tive uma série de namoraditas aqui em Queluz!”

Também na mesma época, costumava reunir-se com os amigos nos jardins do Palácio de Queluz. “Não sei muito bem porquê, mas na altura havia muito menos jardins e parques urbanos… Então, praticamente todos os meses, eu vinha ao Palácio de Queluz. Lembro-me que a entrada era 2 escudos e 50 centavos, o que mesmo para o orçamento curto de um estudante era razoável. E incluía uma visita guiada ao palácio! Depois, havia os jardins. Penso que a entrada nos jardins era 5 tostões, era muito barato. (…) Um dos encantos dos jardins era as laranjas, que eram ótimas! E a malta ia lá comer laranjas. Havia um guarda, um indivíduo que fazia de conta que era turista. Andava sempre vestido com uma gabardine, de Verão e Inverno, e com uma caixa de máquina fotográfica. Sempre a ver se nós comíamos as laranjas – mas nunca fomos apanhados.”

Ricardo é professor da área de Artes no ensino secundário. No início de 1990, foi colocado na Escola Secundária Padre Alberto Neto, onde ensina até hoje. E revela: “O liceu em Queluz começou por ser uma secção do Liceu Passos Manuel [em Lisboa]. Ficava na Quinta da Tascoa, no edifício que hoje pertence à Escola Secundária D. Pedro IV. (…) O Liceu de Queluz propriamente dito abriu em Janeiro de 1972, já autónomo. Chamava-se então Liceu Nacional de Queluz. Mas no pós-25 de Abril, a denominação «Liceu» passou a ter conotações associadas ao antigo regime, e todos os liceus passaram a chamar-se «Escolas Secundárias». Em Queluz, o liceu passou a chamar-se «Escola Secundária Número 1 de Queluz», e só mais tarde lhe deram o nome de “Escola Secundária Padre Alberto Neto”, que é o hoje o seu patrono.”

Ao longo das últimas décadas, apercebeu-se claramente da rápida mudança na paisagem humana da zona. A chegada de cada vez mais emigrantes de várias nacionalidades e culturas mudou hábitos e lugares. Na Avenida Miguel Bombarda, onde sempre viveu em Queluz, assistiu à substituição dos habitantes mais antigos por novos vizinhos, vindos das quatro partes do mundo. “Os filhos dos habitantes mais velhos não ficaram em Queluz. (…) No meu próprio prédio, as pessoas foram falecendo ou indo para lares. E foram substituídas essencialmente por emigrantes – sobretudo Guineenses e Cabo-verdianos. (…) Nos últimos anos, os emigrantes vêm do Oriente, sobretudo do Bangladesh. Creio que já é a segunda comunidade bengali a nível nacional.”

Reconhece que existe em Queluz um certo “atrito cultural” entre diferentes comunidades. “Precisamente para diminuir estas relações tensas, Queluz precisa de espaços de convívio, que não sejam à porta das pessoas – e infelizmente, temos vindo a perder alguns desses espaços. (…) As pessoas têm muito poucos espaços onde possam participar em atividades e ocuparem o tempo. Os espaços que há ou são comerciais, ou, em alternativa, ocupa-se a via pública para conviver. (…)”

“Eu vejo Queluz como um diamante por lapidar. Penso que Queluz tem capacidades de desenvolvimento sustentado, quer em termos arquitetónicos, quer espaciais. Queluz está entre Sintra, Cascais e Lisboa. (…) Temos aqui terrenos agrícolas excecionais, e estão abandonados. Podiam criar-se quintas pedagógicas. Temos uma imensidão de escolas na zona, e muitos alunos não sabem o que é uma galinha – acham que as galinhas crescem nas árvores.”

Mas também em termos de mais-valia turística: “Os turistas passam a caminho de Sintra, descem aqui [no Palácio Nacional] e passam aqui meia hora. Acho que seria desejável apostar, por exemplo, no Bairro do Chinelo [Bairro Almeida Araújo]. Já que este bairro foi construído para as pessoas do povo que trabalhavam no palácio, devia mostrar-se como essas pessoas viviam. Reduzir a história à componente áulica não faz qualquer sentido hoje em dia.”

Acredita que, a partir da década de 1970 e até ao início do século XXI, Queluz foi alvo de uma intensa destruição patrimonial.

Recorda “(…) as obras que se fizeram no Jardim Conde Almeida Araújo. Originalmente, aquilo era um jardim Romântico, à imagem do Passeio Público. (…) Toda aquela alameda, quando foi feita, foi plantada com amoreiras. Foram substituídas por plátanos, e já só resta uma amoreira, que está no parque infantil.”

Ainda nas proximidades do jardim, relembra outras destruições patrimoniais: “O mamarracho (sic) que fizeram na casa do Stuart de Carvalhais. Ou a demolição do antigo cinema de Queluz.”

E termina: “Não sei se Queluz me adotou, mas eu adotei Queluz”.









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Ângela Guedes

81 anos

Nasceu e sempre viveu no Bairro do Chinelo, em Queluz


Ângela nasceu numa casa amarela, de um só piso, no Bairro Almeida Araújo ou Bairro do Chinelo.

Já a mãe nascera no bairro. Quanto ao pai, vinha da zona do Miradouro, umas centenas de metros acima. O nome “Miradouro” prende-se com a existência, nesse lugar, do antigo Tanque do Miradouro que originalmente abastecia de água o Palácio Nacional de Queluz.

O pai de Ângela era pintor de casas de profissão, enquanto a mãe trabalhava nas limpezas domésticas.

Em casa, eram quatro irmãos: dois rapazes e duas raparigas. Os irmãos de Ângela trabalhavam como serralheiro mecânico e numa fábrica de pneus. Já a irmã, era boleira (ou seja, fabricava bolos) no restaurante Cozinha Velha, no Palácio de Queluz. “Fazia bolos de casamento e tudo! Esteve lá empregada muitos anos…”

Da Queluz da sua infância, recorda sobretudo os espaços rurais: “Era tudo montes, campo… Havia vacas, ovelhas… Eu via os rebanhos a passar pelo bairro, e as raparigas que iam para a ceifa. (…) Atrás do cinema antigo, havia uma quinta muito grande. Nós íamos lá e o dono dava-nos hortaliças… (…) O centro de Queluz era só umas ruazitas, e uma série de quintinhas. As casas eram muito baixinhas. Era muito bonito!”

O primeiro trabalho de Ângela foi numa pequena oficina que produzia e reparava “cabeçudos”, ou “gigantones”, para as festas populares de rua. A oficina ficava na zona da Rua Manuel de Arriaga, em Queluz. “Quando tinham a cara ou um braço estragados, a gente arranjava-os. Até trabalhámos para o Teatro Monumental, em Lisboa!(…) Púnhamo-nos num escadote e subíamos, para pôr o papel que fosse preciso.”

Mais tarde, já com 14 anos, começou a trabalhar na Fábrica Rubia, em Queluz. “Estive lá três nos. (…) Fazíamos aquelas bolas às cores, de ir para a praia… E os barcos, para as crianças andarem. No andar de baixo, tínhamos as mesas e as máquinas. No andar de cima, enchíamos as bolas e os barquitos. Também fazíamos bonecas!”

Com 16 anos, começou a frequentar a escola da noite, em Sintra. Aí concluiu o 5º ano, já com 18 anos, após o que começou a trabalhar numa fábrica de gabardines, na Amadora. “Fazia gabardines, chapéus, casacos…”. Por lá ficou até aos 19 anos – altura em que o pai a proibiu de trabalhar fora de casa.

Conheceu então o futuro marido. “Ele vinha trazer o pão aqui à padaria. O pão era feito lá em cima, na Panificadora [de Queluz] e ele trazia-o em cestos para aqui. Conhecemo-nos na padaria!” Casaram e ficaram a viver no Bairro do Chinelo – mas não foi um casamento feliz. Vítima de violência doméstica, Ângela teve sete filhos, sendo que três morreram ainda na infância. O casamento durou 56 anos, até à morte do marido.

Frequentou o antigo Cine-Teatro de Queluz, e conta, entre risos: “No Carnaval, o meu irmão e os amigos iam à caça de morcegos. Quando fechavam as portas do cinema, para vermos o filme, eles soltavam os morcegos lá dentro! Começava tudo a fugir…” Lembra-se também de ir ao circo, que se instalava geralmente nos terrenos onde hoje se encontra o quartel dos Bombeiros Voluntários de Queluz.

“Aqui na minha rua, havia uma sociedade musical, a Sociedade 31 de Janeiro. O meu pai era músico, tocava saxofone. Eu, a minha mãe e os meus irmãos íamos ouvi-lo tocar nos bailaricos.” Aliás, bailaricos era o que não faltava em Queluz: Ângela recorda os bailes organizados pelo Clube Desportivo de Queluz, e revela que se realizavam bailes públicos no edifício da Torre do Relógio do palácio. “Vinha gente de todo o lado para esses bailes: da Amadora, de Tercena, de Barcarena e Massamá…”.

“Gosto de morar em Queluz. Aqui o meu bairro é como uma família. (…) Só não gosto do prédio da igreja de Queluz. Gostava mais que fosse como a de Belas, mais à moda antiga.”

E recomenda: quem vier a Queluz, não pode perder os bailes organizados pelos Bombeiros Voluntários.


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